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quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A riqueza


Outro dia, em artigo de jornal, andei comentando esse assunto de riqueza, mas nem por isso me consegui libertar dele; ficou-me na cabeça e torno a debulhá-lo aqui, com vocês. Foi problema que sempre me interessou, esse de ser rico. Ser rico – quer dizer, ter em mãos possibilidades de poder e privilégios que o dinheiro dá – é o sonho universal das criaturas. Todo mundo precisa, quer dinheiro, o pobre para enganar a miséria, o rico para ficar riquíssimo, o pecador para satisfazer seus desejos, o santo para as suas caridades. E isso não é para admirar, pois o dinheiro representa realmente o denominador comum de tudo que tem valor material nesta vida, inclusive coisas de caráter subjetivo, como o poder, o prestígio, o renome etc. Diz-que até o amor.
Tudo isso é o dinheiro. E contudo não há coisa mais limitada do que o dinheiro, a riqueza. Pois que ele só nos vale até certo ponto, ou seja, até se chocar com os limites dessa coisa intransportável que se chama natureza humana.
Você, por exemplo, que tem o seu contadíssimo orçamento mensal, para você dinheiro é um sonho, representa mundos impossíveis – conforto, luxo, viagens, prazeres – o ilimitado. Querer uma coisa e simplesmente assinar um cheque para obter. Um jardim, um apartamento de luxo, um grande automóvel, ou mesmo o seu avião particular. Boates, teatros, Nova York, Paris! A roda da grã-finagem internacional que também se chama o “café-soçaite” ou os “idle-rich”, os ricos ociosos. Jogar bridge com a Duquesa de Windson, dançar com o Ali Khan.
E entretanto – e aí é que bate o ponto – é bom notar que isso tem um limite bastante rígido. Fora uma conta de prazeres e conquistas sociais, no fundo mais subjetivas do que objetivas, além não se pode ir. A riqueza, sendo capaz de nos proporcionar apenas o que está à venda, não nos pode dar nada de genuíno, de autêntico, de natural. Se você perde a perna num acidente, o dinheiro lhe dará a melhor perna artificial do mundo – mas artificial. Tanto no milionário como no pobrezinho com perna de pau, o coto mutilado é o mesmo, porque a natureza não se vende. E assim, quem compra cabelos supostos não pode esperar razoavelmente senão uns postiços, como já o dizia José de Alencar. E quem fura um olho, possua embora o dinheiro do Rockfeller, terá que se arranjar com um olho de vidro, como qualquer de nós.
Sem falar nas limitações do cotidiano. Pode-se ser rico como se for, não se pode aumentar em nada as extremas da nossa natureza. Comer mais do que cabe no estômago, dormir mais que as horas normais de sono, divertir-se mais do que a nossa capacidade de vigília, amar mais do que a nossa medida de amor. Nem o homem ou a mulher amada podem ser diferentes em nada da mulher do padeiro ou do namorado da copeira. Mais bem lavados, mais bem vestidos, mais refinados, porém na essência os mesmos: têm todos olhos, nariz e boca, duas mãos e dois pés. E ainda não nasceu o rico que, para mostrar o seu poder aquisitivo, procurasse uma mulher com dois narizes ou quatro braços. A riqueza, por mais que o deprave, não lhe tira o horror do monstruoso, que é uma das pedras de toque da natureza humana. O mais que ele faz é chegar a um compromisso e, em vez de mulher de dois narizes, arranjar duas mulheres. Mas aí esbarra com outro limite, pois só se pode divertir com uma mulher de cada vez, e assim, no fim das contas, ter duas ou mais vem dar na mesma coisa do que ter uma só.
Mas todas as desgraças do excessivamente rico ainda não estão em nada disso, estão em coisa pior. É que passada certa quantidade de riqueza o dinheiro deixa de ser nosso servo para nos transformar em servo dele. Dou um exemplo: um homem que possui um pequeno diamante pode andar com ele no alfinete de gravata, em qualquer parte, sem grande perigo de roubo, esquecendo até que o carrega consigo. Mas o dono do Regente ou do Kullinan não pode trazer o seu brilhante no pescoço, tem que o guardar em cofre fortíssimo, tem que o pôr no seguro, tem que viver à espreita do ladrão, do vigarista, do assaltante que, por astúcia ou violência, o tentará despojar do seu tesouro. Em vez de ser ele o dono da pedra, a pedra é que é dona dele, já que a pedra, em vez de o servir, trá-lo constantemente ao seu serviço. E o mesmo acontece com as grandes fortunas em dinheiro; um grande capitalista passa os dias e as noites não a gozar o seu dinheiro, mas a cuidar dele. A procurar empregos sólidos de capital, a vigiar as oscilações da Bolsa e do mercado, a temer revoluções, a temer os prejuízos. Nós, que pagamos no máximo alguns contos anuais de imposto de renda, não podemos calcular as ginásticas que faz para se livrar de taxas o homem que as paga aos milhões.
Moralidade: não tenha inveja dos ricos. Não tenha inveja de ninguém, que é melhor. Mas se quer invejar, inveje o simples abastado que pode satisfazer as suas necessidades e, na medida do possível, alguns dos seus sonhos. E quando nem a abastança pode ser atingida, um bom consolo para o pobre é pensar que, quer com o seu salário mínimo, quer com as rendas vertiginosas do tubarão, tanto um como o outro estão trancados nesta nossa mesma prisão de carne, este “saco de tripas” de que falava o velho Gorki; e se dentro dele pouco podemos, fora dele, então, nada nos adianta, nem dinheiro, nem grandeza, nem poderio. Aí, só a terra fria, nada mais.

Rachel de Queiroz (1910-2003)
Escritora cearense

Crédito da imagem: http://www.historiadigital.org/teoria-da-historia/questao-enem-2009-moral-e-riqueza/

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