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terça-feira, 5 de março de 2013

O excepcional osso



Um colonial, numa hora imprópria, achegou-se na casa do velho amigo e ferreiro. Este, próximo ao almoço, adveio para solicitar um serviço. O dono, em função de muitas negociatas e visitas, não poderia fazer a desfeita de deixá-lo de convidar para o almoço. O indivíduo, vindo de longe e duma grota,  certamente estaria esfomeado e sedento. As lancherias e restaurantes, naquele localidade do interior, inexistiam em vista de adquirir alguma merenda. A eventual possibilidade consistia em ir na venda e solicitar alguma bolacha, linguiça e refrigerante (um lanche típico nos armazéns de outrora).
A família, nas quartas-feiras, mantinha o hábito da degustação da tradicional sopa. Esta, a base de hortaliças e verduras (complementadas com cuca ou pão), mantinham-se de fácil digestão e seguiam alguns pratos quentes. O ingrediente básico do cozido era algum osso (de carne de gado) somado da tradicional massa caseira. Alguma carne, junto ao osso, mantinha-se muitíssimo apreciada. O visitante, como intruso ocasional, ganhou a cortesia de degustar a parte. Este, bastante esfomeado (da longa viagem de carroça puxada a boi), careceu de fazer maior charme. Ele tratou de extraí-lo do caldo e colocá-lo no seu prato. Procurou apreciar a esparsa carne, na companhia do proprietário, externou daí uma queixa/reclamo.
O cidadão, na sua santa burrice e ingenuidade (acrescido da cara de pau), exclamou em boa e viva voz: “- Este osso não tem maior carne!” O dono, sem maiores floreios e rodeios, não teve dúvida. Ele, num ato brusco e rápido, apanhou a peça no prato alheio. Ele, com a mão nua, jogou-o pela janela afora (na direção da cachorrada). Eles, em segundos, fizeram a maior algazarra e briguedo. As partes, convidado e proprietário, continuaram a refeição na aparente  e maior normalidade. A novela do reclamo, da gentileza alheia, tinha terminado a bom termo. Outros pratos, como complemento alimentar, viram-se acrescidos de reforço a refeição. A história do osso cedo espalhou-se no meio comunitário. O forasteiro, tão cedo, não fora mais convidado para alguma refeição familiar.
O hábito e princípio de não reclamar da bondade e gentileza alheia revela-se uma velada norma. A cara de pau de uns ofende o bom senso e a ética (perpassa aquela ideia da inconveniência). O convidado ocasional, de furão, não pode externar maiores comentários e reclamos sobre os sucedidos. “Cavalo dado de presente não se olha os dentes”.
Guido Lang
“Singelas Histórias do Cotidiano Colonial”

Crédito da imagem: http://kitsparecanto.com.br