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quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

A tábua


Quando menino eu era traquinas, rabugento, respondia a tudo que me dissessem e não contribuía absolutamente para que nossa casa fosse um paraíso. Muito pelo contrário!
Meus pais me aconselhavam com paciência infinita e com muito amor sem que eu, entretanto, seguisse os seus conselhos.
Um dia papai me chamou para conversarmos. Eu tinha feito diabruras de toda espécie e pensei que ele tinha perdido a paciência e ia, ou dar-me uma surra, ou um castigo e uma repreensão.
Ele, todavia, não fez nada disso. Não parecia aborrecido e simplesmente me disse.
- Filho, eu percebo que você não tem ideia do que é a sua conduta. Mas pensei em algo que poderá lhe mostrar isso muito bem. É uma brincadeira. Mas poderá lhe ajudar muito. Venha comigo.
Levou-me à sua improvisada oficina de trabalho. Lá dentro falou-me:
Veja, tenho aqui uma tábua nova, lisa e bonita. Todas as vezes que você desobedecer ou tiver uma ação indevida, espetarei um prego nela.
Pobre tábua! Em breve estava crivada de pregos! Mas, a cada vez que eu ouvia meu pai batendo o martelo, sentia um aperto por dentro. Não era a perda só daquela tábua tão bonita, aquilo era, também, uma humilhação que eu mesmo me infringia.
Até que um dia, quando já havia pouco espaço para outros pregos, eu me compadeci da tábua e desejei, de todo o coração, vê-la nova, bonita e polida como era. Fui correndo fazer essa confissão a meu pai e ele, fingindo ter pensado um pouco, me disse:
- Podemos tentar uma coisa. De cada vez que você se portar bem, em qualquer situação, eu arranco um prego. Vamos experimentar.
Os pregos foram, desaparecendo até, no fim de certo tempo, não havia nenhum! Mas não fiquei contente. É que reparei que a tábua, embora não tivesse prego, guardava as marcas deles.
Discuti isso com meu pai que me respondeu:
- É verdade, meu filho, os pregos desapareceram, porém as marcas nunca poderão ser apagadas. Acontece o mesmo com o nosso coração. Cada má ação que praticamos deixa nele uma feia marca. E mesmo que deixarmos de cometer a falta, a marca fica lá: é a culpa.
Nunca mais me esqueci daqueles pregos e da tábua lisa e polida, cuja beleza foi inapelavelmente destruída. E passei a tomar cuidado para que a sensação da culpa não marcasse daquela forma o meu coração. Essa experiência me fez pensar muito e estou certo de que, uma vida digna e bem vivida poderá levar um coração, até o fim, a se manter livre de qualquer prego e das marcas consequentes.

Autoria desconhecida

Obs.: Se algum leitor souber o nome do autor do texto, favor informar ao autor do blog, para que os devidos créditos possam ser concedidos a esta pessoa.

Crédito da imagem: http://jblog.jb.com.br/entreamigos/2011/08/14/disse-te-amo-hoje-pai/pai-e-filho/


Latinha


    O ciclo do calçados, entre 1960 a 1990, avolumou fábricas e negócios. Os empreendimentos, nos vales do Caí, Sinos, Paranhana e Taquari (berços da Colonização Alemã no Rio Grande do Sul/Brasil), espalharam-se nos cantos e recantos dos lugarejos. Inúmeras localidades, a partir de alguma calçados ou curtume, lançaram os esteios da modernização e urbanização. As emancipações, com a formação de distritos, tornaram-se fatos corriqueiros.
Milhares de assalariados, entre filhos de colonos e migrantes – “plantados semanas inteiras nas linhas de produção”, ganharam o aprendizado e o sustento. Barões do calçado, em restritas famílias, formaram-se entre a descendência germânica. Modestos colonos, nalgum momento, enveredaram pelo couro e calçados. Estes, a partir de instalações de fundo de quintal, foram constituindo impérios. Singelos prédios, em poucos anos, tornaram-se monumentais construções. Estradas esburacadas ganharam contornos de modernas rodovias. Migrantes, aos milhares, invadiram os cenários das outroras pacatas colônias...
O curioso relaciona-se aos anunciantes. Veículos, com alto-falantes (entre os anos de 1970 a 1990) clamavam por trabalhadores. Uns, na manhã, paravam nalguma empresa; começaram, à tarde, noutra. Inúmeras placas, com anúncios das especialidades necessárias, haviam afixadas, as dezenas, em frente às fábricas. Estas, a título de exemplo, procuravam cortadores, chanfradeiras, lixadores, revisoras... Vilas, da noite para o dia, pipocaram nas periferias. Elas precisaram abrigar as levas de forasteiros. Inúmeros, trazidos das colônias distantes, para produzir calçados. As encomendas/pedidos, de lojistas nacionais e internacionais, pareciam não dar conta das quantidades (as fábricas). Os famosos cerões/horas extras eram comuns com vistas de atender pedidos. O ciclo parecia eternizar-se no tempo e a decadência algo impensável (no frescor da febre). O dinheiro, em dólares, advinha fácil e graúdo...
A concorrência asiática, sobretudo chinesa, suplantou a época “das vacas gordas”. Outros fatores, como ganância fiscal e legislação trabalhista, a partir de 1988, trouxeram a gradual migração e fechamento de fábricas. Algumas empresas, dos ramos coureiro-calçadistas, fugiram (na direção do Nordeste/BR, América Central e Ásia). Elas, de forma oficial ou “na surdina”, carregavam chefias e máquinas; procuraram ambientes mais promissores aos negócios. As choradeiras e lamúrias tomaram conta de cenários. Inúmeros empreendimentos, as centenas, foram a falência. Prédios monumentais tomaram-se caricaturas/sombras do passado glorioso. Espaços, das outroras esteiras, ganharam novas funções sociais (negócios nas áreas de serviços). Inúmeros barões migraram de atividade ou “penduraram as chuteiras” (queriam auferir os dividendos dos sacrifícios). Poucas empresas, audaciosas e inovadoras, sobreviveram a hecatombe. Casas coloniais, com o “poder das verdinhas”, tinham adquirido ares de mansões. Fazendas e veículos, com o enriquecimento de poucos, foram adquiridos as centenas e restritos foram os reinvestimentos na diversificação produtiva.
Criou-se a “Lenda do Latinha”! Havia calçados tal! Empresa conceituada qual! Mantinha-se o quadro de funcionários/trabalhadores tais! Outros mais: “Cheguei a labutar nesta empresa”. “Os donos eram a família tal”. “Fulano e beltrano, num fundo de quintal, haviam iniciado a empresa” (calçados ou curtume)... A magnitude, para quem vivenciou os fatos, assemelha-se a lorota (na proporção das narrações). Onde ficaram todos esses empreendimentos? Os sucessores não souberam administrar e continuar? Pessoas “forravam o poncho e caíram fora?” Empresas migraram de contextos urbanos (na direção das periferias onde encontram mão de obra mais barata)... O latinha ficou unicamente na memória dos mais velhos e nos registros efetuados nas publicações (jornais e revistas) da época.
          Ciclos econômicos ostentam-se uma rotina nos meios produtivos. O dinheiro fácil proporciona a noção de euforia. Cada momento com suas adversidades e oportunidades. Os calçados/couros, até o momento, foi o período áureo na história da imigração alemã (em paragens da América Meridional).

Guido Lang
Livro "Singelas Histórias de Vida”

  Crédito da imagem: http://www.paraibatotal.com.br/noticias/2012/11/23/65128-setor-coureiro-calcadista-paraibano-promove-forum-estrategico-para-planejar-2013