Outro dia, em artigo
de jornal, andei comentando esse assunto de riqueza, mas nem por isso me
consegui libertar dele; ficou-me na cabeça e torno a debulhá-lo aqui, com
vocês. Foi problema que sempre me interessou, esse de ser rico. Ser rico – quer
dizer, ter em mãos possibilidades de poder e privilégios que o dinheiro dá – é
o sonho universal das criaturas. Todo mundo precisa, quer dinheiro, o pobre
para enganar a miséria, o rico para ficar riquíssimo, o pecador para satisfazer
seus desejos, o santo para as suas caridades. E isso não é para admirar, pois o
dinheiro representa realmente o denominador comum de tudo que tem valor
material nesta vida, inclusive coisas de caráter subjetivo, como o poder, o
prestígio, o renome etc. Diz-que até o amor.
Tudo isso é o
dinheiro. E contudo não há coisa mais limitada do que o dinheiro, a riqueza.
Pois que ele só nos vale até certo ponto, ou seja, até se chocar com os limites
dessa coisa intransportável que se chama natureza humana.
Você, por exemplo,
que tem o seu contadíssimo orçamento mensal, para você dinheiro é um sonho,
representa mundos impossíveis – conforto, luxo, viagens, prazeres – o
ilimitado. Querer uma coisa e simplesmente assinar um cheque para obter. Um
jardim, um apartamento de luxo, um grande automóvel, ou mesmo o seu avião
particular. Boates, teatros, Nova York, Paris! A roda da grã-finagem
internacional que também se chama o “café-soçaite” ou os “idle-rich”, os ricos
ociosos. Jogar bridge com a Duquesa de Windson, dançar com o Ali Khan.
E entretanto – e aí é
que bate o ponto – é bom notar que isso tem um limite bastante rígido. Fora uma
conta de prazeres e conquistas sociais, no fundo mais subjetivas do que
objetivas, além não se pode ir. A riqueza, sendo capaz de nos proporcionar
apenas o que está à venda, não nos pode dar nada de genuíno, de autêntico, de
natural. Se você perde a perna num acidente, o dinheiro lhe dará a melhor perna
artificial do mundo – mas artificial. Tanto no milionário como no pobrezinho
com perna de pau, o coto mutilado é o mesmo, porque a natureza não se vende. E
assim, quem compra cabelos supostos não pode esperar razoavelmente senão uns
postiços, como já o dizia José de Alencar. E quem fura um olho, possua embora o
dinheiro do Rockfeller, terá que se arranjar com um olho de vidro, como
qualquer de nós.
Sem falar nas
limitações do cotidiano. Pode-se ser rico como se for, não se pode aumentar em
nada as extremas da nossa natureza. Comer mais do que cabe no estômago, dormir
mais que as horas normais de sono, divertir-se mais do que a nossa capacidade
de vigília, amar mais do que a nossa medida de amor. Nem o homem ou a mulher
amada podem ser diferentes em nada da mulher do padeiro ou do namorado da
copeira. Mais bem lavados, mais bem vestidos, mais refinados, porém na essência
os mesmos: têm todos olhos, nariz e boca, duas mãos e dois pés. E ainda não
nasceu o rico que, para mostrar o seu poder aquisitivo, procurasse uma mulher
com dois narizes ou quatro braços. A riqueza, por mais que o deprave, não lhe
tira o horror do monstruoso, que é uma das pedras de toque da natureza humana.
O mais que ele faz é chegar a um compromisso e, em vez de mulher de dois
narizes, arranjar duas mulheres. Mas aí esbarra com outro limite, pois só se
pode divertir com uma mulher de cada vez, e assim, no fim das contas, ter duas
ou mais vem dar na mesma coisa do que ter uma só.
Mas todas as
desgraças do excessivamente rico ainda não estão em nada disso, estão em coisa
pior. É que passada certa quantidade de riqueza o dinheiro deixa de ser nosso
servo para nos transformar em servo dele. Dou um exemplo: um homem que possui
um pequeno diamante pode andar com ele no alfinete de gravata, em qualquer
parte, sem grande perigo de roubo, esquecendo até que o carrega consigo. Mas o
dono do Regente ou do Kullinan não pode trazer o seu brilhante no pescoço, tem
que o guardar em cofre fortíssimo, tem que o pôr no seguro, tem que viver à
espreita do ladrão, do vigarista, do assaltante que, por astúcia ou violência,
o tentará despojar do seu tesouro. Em vez de ser ele o dono da pedra, a pedra é
que é dona dele, já que a pedra, em vez de o servir, trá-lo constantemente ao
seu serviço. E o mesmo acontece com as grandes fortunas em dinheiro; um grande
capitalista passa os dias e as noites não a gozar o seu dinheiro, mas a cuidar
dele. A procurar empregos sólidos de capital, a vigiar as oscilações da Bolsa e
do mercado, a temer revoluções, a temer os prejuízos. Nós, que pagamos no
máximo alguns contos anuais de imposto de renda, não podemos calcular as
ginásticas que faz para se livrar de taxas o homem que as paga aos milhões.
Moralidade: não tenha
inveja dos ricos. Não tenha inveja de ninguém, que é melhor. Mas se quer
invejar, inveje o simples abastado que pode satisfazer as suas necessidades e,
na medida do possível, alguns dos seus sonhos. E quando nem a abastança pode
ser atingida, um bom consolo para o pobre é pensar que, quer com o seu salário
mínimo, quer com as rendas vertiginosas do tubarão, tanto um como o outro estão
trancados nesta nossa mesma prisão de carne, este “saco de tripas” de que
falava o velho Gorki; e se dentro dele pouco podemos, fora dele, então, nada
nos adianta, nem dinheiro, nem grandeza, nem poderio. Aí, só a terra fria, nada
mais.
Rachel de Queiroz (1910-2003)
Escritora cearense
Crédito da imagem: http://www.historiadigital.org/teoria-da-historia/questao-enem-2009-moral-e-riqueza/